Rio -  Passei na frente de um grande galpão em São Paulo, e fiquei impressionado com a fila enorme de cachorros, que pacientemente aguardavam ali alguma coisa que estaria por acontecer. Indaguei, e o motorista me respondeu com orgulho e simpatia: “Eles estão esperando seus donos, moradores de rua que dormem aí dentro, neste abrigo que a prefeitura construiu para que eles passem estas noites tão frias. Os cães dormem na calçada, não arredam o pé enquanto os mendigos não saem daí”... Talvez sejam estes cães que vigiam os pobres homens, quando playboys enfastiados brincam de atear fogo neles, só para passar tempo.
Fidelidade canina, enfrentando as intempéries do inverno paulista por seus desvalidos donos, demonstrando assim que as leis dos homens (que colocam estes habitantes das ruas como a base da pirâmide social, a mais desvalorizada) não são as mesmas leis do cão. Alias, a fila de vira-latas combinava perfeitamente com a fila de mendigos, que tem tudo a ver com uma fila de madames nos salões de beleza e seus lulus da pomerânia. Qual a diferença entre um vira-latas e um pug chinês? Pulgas, talvez.
Aproveitando todas as minhas considerações e empolgação com a fila de pulguentos, o jovem motorista começou a me contar a história daquela que depois eu descobriria que se chamava a cadela Mel. Ela estava chegando em casa quando viu um garoto de 11 anos pegando um cachorrinho recém-parido e atirando-o com toda a força contra um muro velho.
Indignado, reclamou de tanta crueldade e, ao ouvir a gargalhada de deboche do adolescente, foi reclamar na casa da mãe do desalmado. Como a mulher queria saber o que seu garoto tinha feito de tão grave, foi levada para ver a barbárie, e lamentou que algo tão trágico tivesse acontecido com a cadela que pertencia ao motorista. Qual não foi a reviravolta da história quando a senhora descobriu que a cadela era da rua, não pertencia a ninguém: se não é sua você não tem o direito de reclamar nem de esculachar meu filho por causa de um bando de vira-latas.
O motorista levou a cachorrinha ao veterinário e ouviu dele o diagnóstico: só amor e cuidados poderiam salvá-la da morte. Decidido, ele batizou-a de Mel e levou-a para casa. Ela se recuperou, mas ficou cega dos dois olhos. Mas segundo ele, Mel vê mais que muita gente, pressente chegadas e confia tanto na voz dele que mesmo sem enxergar o caminho, vai em direção ao som que ouve dele. Tornou-se um símbolo para a vizinhança de superação e nobreza. E comparada aos seus algozes, ela prova que tem cachorro que é melhor que gente.