terça-feira, 14 de maio de 2013

Milton Cunha: Dez anos posando de bonzinho


Milton Cunha: Dez anos posando de bonzinho

O maníaco excita-se com a possibilidade de, além de cometer o crime, ficar bem na fita

O DIA
Nos olhos do criminoso, a família vitimizada chorando pelo crime que ele cometeu, mas ninguém sabe. O malévolo abraça, com os mesmos braços que cometeram o crime, a mãe desesperada, que, em sua dor oceânica, não consegue sentir no encontro que está diante do algoz. A genitora abraça o corpo da energia má que lhe roubou a filha amada, e sua intuição infalível de mãe-leoa, falha.
Ou, se ela sente seu sexto sentido, convence-se na mesma hora de que está louca com a situação, confundindo tudo, sem discernimento. Anos depois, ela vai se arrepender amargamente daquele abraço, daquele encontro, daquela nojeira indigna. Vai tomar milhões de banhos e se esfregar, porque aceitou aquele abraço do indizível.
O sequestrador vai manter a filha deles presa por uma coleira, em um quarto escuro de sua casa, pelos próximos dez anos. E ele sente um frio de prazer e superioridade naquele encontro: enganou a todos. É poderoso, é invencível, é o primeiro na história da humanidade a enganar o mundo, para sempre. Ele pode. Tudo. Até se aproximar dos entes enlutados, que procuram uma pista, a explicação e o corpo.
O maníaco excita-se com a possibilidade de, além de cometer o crime, poder ficar bem na fita. Desta forma, exclui-se de ser suspeito. Vai até o pai da desaparecida, afaga-lhe a careca, diz que lutará com todas as forças para encontrar a adolescente. E ao sair dali, estupra a garota por mais de uma década, feliz de ter comparecido ao Baile de Salsa que angariaria fundos para a campanha que tentaria resgatá-la. Ele, músico, tocou sobre a desgraça da família: acordes do macabro, melodia sentimental da alegria caribenha embalando a sordidez de sua mente doentia.
Agora, eu e você estamos dentro do olho do criminoso: somos sua retina e vamos ver o que ele vê, para tentar pensar o que sente uma mente malévola. Comparecer às vigílias pela vítima é checar com quantos deles ela se parece, degustar em delícia cada lágrima naqueles rostinhos e, se possível, também verter uma lágrima de regozijo por ter mais um corpo a disposição no cativeiro. O cão adora estar ali. Sente calafrios de prazer e gosta cada vez mais daquilo: poder ser dois, ser santo e demônio, onde só ele e a vítima sabem de tudo.
Transitar em dois universos de dor, da menina e da família, e ter controle absoluto sobre ambos. O sexo não consentido, onde ele é o maioral que determina o indigno; e a benevolência suprema da solidariedade comunitária que o eleva a categoria do respeitável. Ser médico e monstro, lobo e cordeiro. A encarnação de eros (amor) e thanatos (morte, que tem o coração de ferro) da qual a psicanálise de Freud nos falava.
Milton Cunha é colunista

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