quinta-feira, 4 de julho de 2013

Especial Seca: A vida no Rio, o coração no sertão

Especial Seca: A vida no Rio, o coração no sertão

Como milhares de nordestinos que migraram para o Rio, o paraibano Geraldo sofre de longe com a seca e espera um dia rever a terra natal

ALEXANDRE MEDEIROS
Pombal (Paraíba) e Rio de Janeiro - Seria festança de assar carneiro e garrote na brasa, passar na farofa, bicar uma purinha e deitar na rede para prosear. Motivo mais justo não haveria de ter: o centenário da casa grande do Riacho da Roça, construída em 1913 no sítio de Pombal, no sertão da Paraíba, onde nasceram os irmãos Célia, de 53 anos, e Geraldo Trigueiro Cardoso, de 66. Gerente de um bar em Copacabana, Geraldo era o convidado mais aguardado: voltaria a pisar em Pombal depois de 25 anos, ia ver sobrinhos crescidos que só de fotografia conhecia.
Mas a seca sepultou qualquer ensejo de festa. Geraldo nem chegou a arrumar a mala da viagem, com a qual sonhou chegar à praça central de Pombal para rever a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, a mais antiga da cidade, de 1721, e constatar com os próprios olhos que ela agora tem como vizinho um shopping center. Pelo telefone, a irmã Célia dava as tristes notícias: a estiagem fizera secar os açudes e levara embora do Riacho da Roça 39 reses e 43 ovelhas.
No balcão em Copacabana, além da saudade, Geraldo passou a vender doses de angústia. “Queria ver se o pé de tamarindo defronte da casa resistiu”, ele comentou, em meados de maio, sob as peças de carne de sol penduradas no teto do bar, reduto de nordestinos, muitos na mesma aflição com as notícias da seca. Já então deveria estar no gozo das merecidas férias, curtindo a festa do centenário da casa. “Tem uma foto do pai de página inteira na revista O Cruzeiro, de 1955, vestido de vaqueiro, como era o hábito. Acho que minha irmã ainda tem essa foto lá em Pombal”, lembrou Geraldo.
Não dá para matar a saudade, muito menos aliviar toda a angústia. Mas Geraldo teve notícia de que o pé de tamarindo resistiu, sim, à estiagem. E que a foto do pai está na parede da sala da casa centenária, onde reina o silêncio no lugar da festa. Ele teve de adiar a viagem, mas O DIA foi até o Riacho da Roça, fez prova de foto da visita, e trouxe mais notícias da seca, como passa agora a contar.
Célia e a filha Maria Alice, sob a sombra do pé de tamarindo que resistiu à seca
Severino Silva / Agência O Dia
Difícil achar mandacaru de pé na estrada de terra que leva ao Riacho da Roça. Há que se embrenhar pela caatinga para encontrar algum, pois quase todos foram cortados para virar ração e dar de comer aos animais. “Está assim em todo canto, muita gente cortou mandacaru pela raiz, e a planta não cresce de novo”, diz Célia Rejane Trigueiro Cardoso de Assis, a caçula da família. Dos outros quatro irmãos, todos homens e mais velhos, um faleceu ano passado. Os três restantes engrossam há décadas a numerosa colônia nordestina no Rio de Janeiro, Maciel, Raimundo e Geraldo, este o gerente de bar em Copacabana cuja última visita a Pombal se deu em 1988.
Naquela ocasião, Júlio César, primogênito de Célia, contava só 6 anos. E Maria Alice, a filha de 21, nem tinha sido dada à luz. Hoje com 31 anos, é Júlio que ajuda a mãe a cuidar do Riacho da Roça. “Não fosse ele, que ama muito esse lugar, talvez eu já tivesse desistido”, confessa Célia que, assim como os irmãos, nasceu no sítio. “Ninguém foi para maternidade”, ela ri.
A expressão volta a fica carregada quando Célia recorda os momentos mais tensos da seca. “Vendo os animais magros e com fome na estiagem, meu pai dizia assim: ‘A comida não tá me servindo’. Eu achava aquilo besta, como havia de se recusar comida só por causa do gado? Mas agora eu vejo como ele se sentia. Quando a gente perdia animal nessa seca, eu voltava do sítio para a cidade com meu filho sem dizer palavra, aquele silêncio. Um não tinha coragem de falar com o outro.”
Não foram poucos os agricultores de Pombal que passaram necessidades na estiagem para tentar salvar o rebanho. “Teve gente que deixou de se alimentar e de comprar remédios, sobretudo os aposentados, para dar ração aos animais. Na comunidade rural de Timbaúba Velha, nós conseguimos evitar que quatro famílias abandonassem a terra com a construção de um poço artesiano. Mas é pouco o que podemos fazer diante de tanta devastação”, diz Maria de Lourdes Santana, a Lurdinha, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Pombal, que tem 21 mil associados.
A mais de 1.800 quilômetros de Pombal, Geraldo também relembrou as cenas da estiagem que sua memória de menino guardou. “Na seca de 1958, os bodes iam beber o resto de água no Açude do Caminho do Boi, onde eu até pescava quando estava cheio, e ficavam presos. A gente tentava salvar, mas muitas vezes não conseguia e os bichos, já fracos, ficavam ali até morrer”, contou ele em Copacabana, ainda antes que a equipe do DIA partisse para a Paraíba.
O açude está seco como na memória mais triste de Geraldo. Da mesma forma que o barreiro que leva seu nome no sítio, assim batizado porque foi dele a iniciativa de cavar buraco na terra com as próprias mãos de menino para aparar a água da chuva. “O pai cuidou de aumentar o buraco e ele está aí até hoje, ainda é o Barreiro do Geraldo”, mostra Célia, emocionada, antes de levar os visitantes, que trata como velhos amigos, à casa centenária. Com paredes grossas, amplos cômodos e um Jeep anos 1960 na garagem, a casa parece estacionada no tempo. Na parede da sala está a foto de Manoel Cardoso de Almeida, o pai, com seu vistoso gibão, reproduzida de uma edição de 1955 da revista O Cruzeiro. Diz a legenda: “Só com esta roupa, espécie de armadura de couro, o vaqueiro pode enfrentar o Oeste selvagem”.
Os temores de que a seca se prolongue, como Célia acredita, já espalha as rezas pelo Oeste selvagem que parece o mesmo da foto na parede. “Agora ainda tem uma raminha, mas o gado que restou está fraco, e logo essa raminha vai secar. O pior está por vir”, crê Célia.
Dizem que Juazeiro do Norte, no Ceará, será pequeno para a romaria do Padre Cícero, que começa em outubro. As ladainhas e as velas já estão por lá. Em Pombal, além da igreja antiga, as preces devem se concentrar na Matriz de Nossa Senhora de Bonsucesso, erguida em 1872. Foi ali, no batizado do irmão mais velho, em 1952, que Geraldo viu um automóvel pela primeira vez na vida, um Mercury norte-americano, o único táxi da cidade, em época que o Brasil nem sonhava em produzir carros.
A visita ao Riacho da Roça chega ao fim. Célia e Maria Alice gravam mensagens em vídeo para Geraldo, falando da saudade e convidando-o a visitar os parentes quando puder. A menina, que nem sabe reconhecer o tio nas fotos antigas, é econômica e brincalhona nas palavras: “Que o senhor saia aí da sua vida mansa no Rio de Janeiro e venha aqui nos visitar”.
No Rio, Geraldo ri ao ver a mensagem da sobrinha no balcão. “Vida mansa? Essa é boa. Vou mostrar aos meus dois filhos”, diz ele, que aqui criou a moça de 27 e o rapaz de 22, aprendeu a amar a Portela e o Flamengo, aprimorou o gosto musical com as canções de Nelson Gonçalves, Noite Ilustrada e João Nogueira, mas não esqueceu as raízes. “Eu lembro de cada canto daquela casa, não esqueço nada de lá”. Os olhos enchem d’água, mas ele não verte lágrima. Sertanejo não chora, não é mesmo? “Rapaz, o pé de tamarindo cresceu”, disfarça Geraldo, com sua voz de seresteiro, já rodeado de outros nordestinos da mesma Paraíba, de Pernambuco, do Ceará, do Maranhão. Cada um mata um pouco a sua saudade vendo um pedacinho da caatinga nas imagens. Como se o sertão, por um instante, virasse mar em Copacabana.


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