terça-feira, 10 de setembro de 2013

Bruno Filippo: O protagonismo do samba-enredo

Bruno Filippo: O protagonismo do samba-enredo

'O juízo de valor de um samba-enredo assenta-se sobre sua apreciação melodia e poética', diz colunista

BRUNO FILIPPO
É consensual que o samba-enredo, com a revolução estética das escolas de samba, perdeu paulatinamente nas últimas cinco décadas bom quinhão do protagonismo do desfile, de início dividindo-o com o visual das fantasias e das alegorias, depois subjugando-se a estas. Porém há uma época do ano em que ele reina absoluto: neste momento de disputa de samba-enredo, em consequência da mobilização de compositores, torcedores, amantes da folia e imprensa especializada, a competitividade das agremiações é medida pelas notas musicais das composições que brigam para serem vencedoras.
Até que a especulação sobre o trabalho dos barracões, já em janeiro, e o próprio desfile trazem para a análise outros referenciais com os quais o samba-enredo tem de conviver. De modo que, nesta coluna, tecerei alguns comentários sobre o momentâneo protagonista do carnaval.
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Há um tipo de crítica à crítica dos samba-enredos que merece análise mais acurada. É aquela que entende que a obra só pode ser julgada depois do carnaval, ou seja, depois do desfile da escola. Por esse raciocínio, a qualidade da obra está atrelada de maneira intrínseca à sua funcionalidade. Se tirou as quatro notas máximas e ainda ajudou a escolas nos outros quesitos, é um bom samba. O samba “funcionou”, diz-se nesta canhestra semântica. Aos críticos caberia, no máximo, tentar antecipar como os sambas vão apresentar-se na avenida, o que tornaria a crítica um mero exercício de pitonisa.
Ocorre que os samba-enredos são obras que demandam um processo criativo que se pode valorar por meio de sua análise estética. Profissionais da música – arranjadores, instrumentistas, intérpretes, produtores, coristas – dedicaram-se, no estúdio de gravação, a moldar-lhe essa estética, a dar-lhe uma “cara”. O juízo de valor de um samba-enredo assenta-se sobre sua apreciação melodia e poética.
Bruno Filippo é colunista do DIA na Folia
Foto:  Divulgação
Quando o CD é gravado, registram-se seus sambas para a posteridade; e é sobre esses registros que se fazem valorações, e não sobre o uso que se fará deles. Uma escola que foi campeã desfilando com um samba ruim – e isso tem acontecido com muita freqüência – não vai alterar sua qualidade musical. Continuará a ser um samba ruim.
Não é diferente em outros gêneros musicais. Uma canção do Tom Jobim não é uma obra-prima pelo modo como foi interpretado num show. É obra-prima porque há toda uma maneira de balizá-la assim. Se um cantor a interpretou mal, se o arranjo a descaracterizou, o problema está no cantor e no arranjador, não na música. Os gênios da música clássica compuseram várias daquelas maravilhas por encomenda. Saber se elas “funcionaram” não vai alterar o patamar que alcançaram.
Não é somente o crítico das gravações do samba-enredo que encarna o papel de esteta. Essa possibilidade é aberta ao próprio julgador oficial pelos critérios de julgamento, que nada têm de objetivos. Quando o regulamento diz que o julgador deve analisar a qualidade poética do samba, permite que ele tire pontos da Unidos da Tijuca pelo cacófato produzido pela expressão “minha Tijuca”. Esse exemplo é extremo, mas ilustrativo de como os juízos de valores interferem na avaliação de uma obra. Para o jurado, o cacófato não poderia ser relevado – como muitos apontaram – porque comprometia a sonoridade do samba. Um juízo puramente estético.
A análise funcional do samba-enredo ainda enfrenta o problema do acaso. Porque ninguém, nem os expertos, é capaz de antever como a escola desfilará, como o samba-enredo “funcionará”. Assim, o samba está sujeito ao imponderável e às contingências.
Avaliar o samba-enredo utilizando como critério a substituição do juízo de valor pelo juízo de fato, pondo ênfase somente no resultado do desfile, é negar-lhe o status de arte, é subestimar seus criadores, é subjugá-lo ao acaso, é transformá-lo em mero instrumento, é desrespeitar o ouvinte. É minimizar suas qualidades, é igualar a excelência à mediocridade. Quem pensa dessa forma tem a obrigação de considerar “Os sertões”, com o qual a Em Cima da Hora foi rebaixada em 76, um dos piores sambas da história do carnaval, sob risco de incorrer numa insolúvel contradição na lógica do raciocínio.
Não é à toa que a emergência deste pensamento coincide com um dos momentos menos gloriosos da história de um gênero que já nos encheu de orgulho.
* Bruno Filippo é jornalista e sociólogo
    Tags: Bruno Filippo , Carnaval , Artigo

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