Se o sentido gastronômico interessar a dicionários brasileiros, alugo minha definição para 'Tapa':
"Pequena
porção de comida preparada com ingredientes de qualidade e técnicas
variadas, de procedência ou inspiração espanhola, sugerindo taças de
vinho na degustação embora afaste qualquer tipo de formalidade, nascendo
em balcões a serviço da descontração, do sabor, da sociabilidade e das
relações humanas".

Calle
Sierpes, Sevilha, sul da Espanha, século 18. Poeira e calor. O
movimento incessante do centro comercial da cidade e a fina flor da
aristocracia local vendo a vida passar por trás das grandes janelas de
cristal dos cassinos e clubes da moda.
Hora do aperitivo, e pela
porta saíam mensageiros e empregados rumo às tabernas para buscar taças
de vinho como o distinto Jerez.
Na curta jornada, as taças eram
protegidas e tapadas com pedaços de papel pardo, logo substituídos por
fatias de jamón, nacos de queijo ou embutidos. Gentileza para seduzir a
clientela abastada.
Armados de seus melhores acepipes, os bares
daquela Espanha iniciaram a batalha dos sabores: quem tapava melhor? A
tapa protegendo a taça. A taça escoltando a tapa. Sacramento de um
casamento eterno. Assim nos conta o cozinheiro sevilhano Enrique
Becerra, em seu 'El gran libro de la tapa y el tapeo'.
BascosInício
de 2008. Noite fria a poucos metros do Mar Cantábrico. Parte antiga da
cidade basca de San Sebastián, no norte da Espanha, a 18 quilômetros da
França.
Por trás da porta de vidro, abrindo espaço entre pessoas,
risadas, taças e brindes, sobre apertado balcão de madeira, estendo a
mão por cima das cabeças para alcançar pequeno prato corriqueiro da
casa: um naco de foie gras na chapa sobre compota caseira de maçã e
molho de salsa.
Alguns passos pela rua de pedra, nova taça e
balcão versando em tema único: anchovas frescas e marinadas sobre fatias
de pão. Por cima delas, opções. Fui nas ovas de ouriço. Depois, no
creme de caranguejo 'centolla'.

Uma
esquina, mais vinho (cava, branco, tinto, rosé?) e um oceano de
'pintxos' (grafia basca) que, a rigor, são as tapas espetadas em
palitos, ou montadas sobre fatias de pão (os 'montaditos'), típicos do
País Basco, povoando bandejas enfeitadas entre vasos de flores e
garrafas, sob pernas de porco pendendo em forma de sublimes presuntos.
Cada
balcão querendo superar o anterior em variedade e sabor: camarões,
linguiças, bacalhaus, pimentões, anchovas, mexilhões, alcachofras,
berinjelas, cogumelos, lulas, polvos, lagostins... Salteados, fritos,
crus, defumados, marinados, curtidos, embutidos, frios, quentes,
simples, sofisticados...
Compartilhei com dois amigos espanhóis
que acabara de fazer no balcão minha súbita revolta diante da mais óbvia
e não realizada das empreitadas: como pode o Rio de Janeiro não ter um
bar de tapas?
MagiaFinal
de 2011. Noite quente no Humaitá, Zona Sul do Rio. Na taça, cava
borbulhante. No pão, linguiças espanholas 'chistorras' fatiadas sob um
ovo de codorna frito. Ao meu lado, sem que eu ainda soubesse ou tivesse
trocado palavra alguma, minha futura mulher. Mas isso é outra história.
Ou quase.
Não será o caso de amor iniciado no balcão resumo bem acabado da magia das tapas?
A SemanaPrestes
a abrir sua primeira filial, no Jardim Botânico, o citado Entretapas é
hoje uma das pontas do triângulo que sugere, antes tarde do que nunca, o
início de um roteiro carioca de tapas conforme descritas no verbete lá
de cima.
O Venga! (Ipanema e Leblon) e o Pintxo (Ipanema)
completam a lista que acaba de inspirar a realização da primeira Tapas
Week no Rio: com apoio da Embaixada da Espanha, o festival vai até o
próximo domingo, dia 29, e contará também com o restaurante Eñe, dos
irmãos espanhóis Javier e Sergio Torres, em São Conrado, que prepara
repertório de pequenas porções para a festa.
Cada casa criou menu
de quatro tapas salgadas e uma sobremesa, ao preço fixo de R$ 55 (R$ 85
no Eñe, com cinco tapas e duas sobremesas).
O Entretapas tem
delícias como pimentão espanhol de 'piquillo' recheado com brandada de
bacalhau; o Venga! tem 'croquetas' de paella e salada de bacalhau no
menu; o Pintxo serve tapa de foie gras com manga; e o Eñe tem cozido de
lentilhas com 'chorizo'.
RevoluciónNão
custa lembrar que a Espanha foi palco da última 'revolução'
gastronômica, quando mestres bascos como Juan Mari Arzak e Martín
Berasategui, diretamente influenciados pela Nouvelle Cuisine francesa,
ensaiaram grande salto na década de 80.
O catalão Ferran Adrià,
discípulo confesso da turma, foi a criatura que se tornou criador, um
dos maiores da gastronomia em todos espaços e tempos, nos anos 2000. E
há muito das tapas em sua cozinha 'tecnoemocional', a mais influente do
século 21.
Hoje, as tapas se espalham pelo mundo e resumem todas
as regiões espanholas e seus produtos, naturalmente mescladas e
adaptadas a cada cultura. E já definidas, pela recente evolução, como
'alta gastronomia em miniatura'.
BrindeEmbora
a cerveja seja sempre parceira, são taças de vinho as companheiras
clássicas no 'tapeo', de acordo com a história já contada de sua origem.
Reza cartilha ortodoxa, a duração de uma tapa deve ser a mesma da taça:
nenhuma das partes pode sobrar ou faltar. Na Espanha, o frescor da
sidra é boa opção, e na região basca a acidez se impõe no 'txacoli',
vinho frisante de uvas brancas. Bebidas que não existem por aqui.
Então vamos 'tapear' - verbo incluído recentemente no dicionário da Real Academia Española: "Tomar tapas en bares y tabernas".
ClássicosO trio carioca das tapas começa por apresentar as receitas clássicas.
Em
comum, estão nas cartas o vermelho do gazpacho - a sopa fria de
tomates, pepino, pimentão e alho -, os queijos tipo Manchego de ovelha,
os jamóns (presuntos curados) e as tortillas de ovos, batatas e o que
mais pintar.
Do mar vêm o 'Pulpo a Gallega', tentáculos de polvo
salteados com batatas douradas em azeite e páprica, e as 'Gambas al
Ajillo', camarões fritos com alho, vinho, pimenta e salsa.
As
condimentadas linguiças 'chistorras' são indispensáveis, assim como as
'croquetas': os croquetes espanhóis macios e de sabores variados, feitos
com leite, manteiga e farinha.
Vamos às distinções.
PintxoCaçula
da turma e aberto há três meses, o Pintxo, como diz o nome, é obra do
basco Joseba Irurzun, de San Sebastián, e de sua mulher, a carioca
Cassila Canoro.
Longo balcão, cozinha aberta, decoração de fotos,
cartões postais e até figurinhas de álbuns bascos, a casa da Rua Gomes
Carneiro foca seu menu nos espetados e montados, com liberdade para
brincar com ingredientes e sabores brasileiros.
Entre os pintxos
frios, há montaditos de kani com salmão; creme de gorgonzola com nozes;
musse de pimentão de 'piquillo'; ou a mistura de jamón, pimentão verde
assado, queijo brie e goiabada.

Na
lista dos quentes, montadito de ovo com chistorra e pimentão de
'piquillo'; camarão com jamón e melado; foie gras com cebola
caramelizada e manga; ou a deliciosa 'morcilla', embutido de sangue e
arroz, com ovo de codorna. Há opções de combos de 6 ou 10 pinchos.
Na
seção das 'Raciones', tapas como alcachofras salteadas; lula na própria
tinta; e os mexilhões recheados que seguem receita da mãe do chef
Joseba (cuja família paterna produz foie gras nas montanhas do norte
espanhol). O 'Salmorejo' é gazpacho com ovo cozido e jamón ibérico.
Para
beber, cervejas da série catalã Estrella Damm e 13 vinhos brancos,
tintos e rosés espanhóis na carta - quatro servidos em taça -, além de
quatro tipos de Jerez e licores como o 'pacharán', presente em drinque
com cava. Há quatro tipos de sangria.
Venga!Primeiro
a dar as caras na cidade, o Venga! surgiu na Rua Dias Ferreira em 2009,
obra dos irmãos cariocas Fernando e Roberto Kaplan, com consultoria
inicial de cardápio da chef Ciça Roxo.
É o único dos três que não
tem espanhóis como proprietários, criando em ambiente aconchegante uma
'taberna contemporânea', com mesas na varanda e repertório de pintxos
quentes e frios.

Com
filial aberta no fim de 2010 na Rua Garcia D'Ávila, a casa parte de
clássicos para receitas que se permitem fugir de ingredientes e
apresentações espanholas.
Há tapas como os 'Revueltos de Bacalao'
(bacalhau desfiado com ovo mexido, batatas e páprica picante); o 'Rabo
de Buey al Pedro Ximenez' (rabada desfiada com purê de gergelim e
redução de vinho Pedro Ximenez); 'Huevo Loco' (parmentier, chouriço,
presunto serrano e ovo poché); ou 'Rollitos de Anchoas' (anchovas
enroladas em pão de miga com Emmenthal e mostarda Dijon).
Na casa
de Ipanema as paellas surgem no almoço e variam de sabor a cada dia
(arroz negro, bacalhau com espinafre, massa fideuá...), e à noite o
espaço 'Venga a los Fogones' oferece 12 lugares reservados no segundo
andar, com entrada pela cozinha, para degustações exclusivas a preço
fixo.
Recentemente, a filial da Garcia recebeu carta de drinques
exclusivos criada pelo mixologista João Eusébio, que trabalhou no Dry
Martini, em Barcelona.
A Caipirinha Venga, por exemplo, leva
cachaça, Jerez Pedro Ximenez, maçã verde e limão tahiti. O Bilbao tem
licor 'pacharán', água de flor de laranjeira e sucos de limão siciliano e
cranberry.

O
Venga! recebeu recentemente um menu especial do jovem chef carioca
Rafael Costa e Silva, que trabalhou no conceituado Mugaritz, em San
Sebastián. Ele fez tapas como mini-hambúrguer de atum com molho de
pimentão de piquillo; lula cozida na própria tinta com torta de arroz
salteada; e bochecha de boi ao vinho tinto com purê de mandioquinha e
'trocitos' de chorizo.
Há 39 opções de vinhos, todos espanhóis, cervejas catalãs Estrella Damm e quatro tipos de sangria.
EntretapasAberto
em 2011 num dos casarões da Rua Conde de Irajá, pelas mãos do espanhol
Antonio Alcaraz e do chef Jan Santos, mineiro que morou, estudou
gastronomia e trabalhou em Madri, o Entretapas é o mais fiel
representante da escola espanhola na cidade.
O ambiente à
meia-luz de restaurante, enfeitado com a 'sombra' imponente de um grande
touro na parede e um longo espelho horizontal, ganha atmosfera de bar a
partir da mesa alta e compartilhada próxima às janelas, das mesinhas na
varanda e no pequeno mas animado balcão.

O cardápio tem seções como 'De la Tierra', 'Del Mar', 'Las Cazuelitas', 'Croquetas' 'Montaditos' e 'Huevos'.
Da
primeira, sugestões como 'Carrilleras al Vino Tinto' (bochecha de
vitelo cozida no vinho tinto em base de purê de grão de bico); o 'Ajo
Blanco' (sopa fria de amêndoas com toque de alho, vinagre de vinho e
uvas brancas); e a 'Costilla Lacada con Damasco' (costela suína
desossada e cozida em caldo de legumes, grelhada e acompanhada de purê
de damasco).
Na seção marítima, vale apostar na Brandada
Entretapas, emulsão de bacalhau e batata sobre base de tomate e geleia
de pimentão vermelho. Entre as 'cazuelitas', destaque para as 'Habitas
con Jamón': favas salteadas em azeite com Jamón Serrano.
Da seção
'Huevos' vem um campeão de audiência, os 'Huevos Rotos': combinação de
ovos estalados, batatas-fritas, linguiças do tipo chistorra e chorizo.
Dos
'Montaditos' no pão, é belo achado a 'Sardina al Pedro Ximenez':
sardinha marinada com vinagre de vinho branco sobre base de cebola
caramelizada com vinho Jerez doce.

Aos
sábados e domingos a casa abre para almoço e oferece paellas variadas
(Valenciana, frutos do mar, costelas e carnes suínas...), e a carta de
vinhos tem 47 rótulos, a maioria espanhóis mas com espaço para
argentinos, uruguaios e chilenos. Uma nova seção apresenta 10 tintos da
Catalunha. Há três tipos de sangria.
O Entretapas promove belos
eventos de intercâmbio, a exemplo do 'Como na Espanha', em parceria com
Instituto Cervantes, trazendo chefs de diferentes regiões espanholas
para cozinhar. O próximo destino será a Andaluzia, e Jan e Antonio estão
de passagem marcada para estudar a região.
E pensar que há quatro anos estávamos no deserto...