Rio -  O sorriso largo, marca registrada, disfarça a infância sofrida em Recife. A facilidade de comunicação cativa a criançada e reforça a liderança entre os adolescentes. Os resultados do trabalho a transformam num exemplo a ser seguido por outras comunidades. Mas nem sempre foi assim a vida de Zoraide Francisca Gomes, a Cris dos Prazeres, 41 anos: quando começou seu trabalho de prevenção a Doenças Sexualmente Transmissíveis e gravidez precoce no Morro dos Prazeres, há 17 anos, o mais difícil foi enfrentar o preconceito.
Foto: André Luiz Mello / Agência O Dia
Foto: André Luiz Mello / Agência O Dia
“Tive de ouvir os garotos recebendo a camisinha e me chamando para experimentar com eles”, relata a Guerreira do Prazeres. “Foi o de menos. Meu prazer verdadeiro sempre foi ajudar os outros.”
Liderança consolidada na comunidade, onde há 16 pontos de distribuição de preservativos espalhados por lan houses, salões, biroscas e na sede da Associação de Moradores, Cris “meu nome artístico” dos Prazeres bate no peito para falar dos números que alcançou. Se no ano 2000, quando conseguiu apoio do poder público para o trabalho, distribuía até 300 preservativos por mês, hoje, 13 anos depois, multiplicou o número por cinco.
“Já são mais de 1.500 camisinhas entregues a cada mês”, afirma ela, orgulhosa por ajudar a evitar a gravidez precoce das adolescentes do morro. “Começou quando eu vi aquelas meninas, novinhas ainda, grávidas, sem ter a menor ideia do que acontecia”, conta ela, mãe de três filhos.
Há 30 anos na comunidade, aprendeu a ser solidária ao chegar ao Morro dos Prazeres — sozinha. Hoje, faz questão de deixar claro que seu trabalho não é o de simplesmente entregar preservativos. Seu trabalho, define, é de cidadania. “As pessoas têm direito ao preservativo. Mas não é só isso. É preciso entender que usar preservativo é protegerquem se ama, quem se quer. É questão de respeito”, declama, num tom próximo do discurso.
Cris lembra que muitas mulheres, no começo de seu trabalho, não gostavam que ela oferecesse camisinha a seus maridos. Várias vezes foi interpelada, de maneira hostil, por estas esposas. Demorou, mas elas entenderam, assim como os seus maridos. “Quando eu percebi que estes maridos estavam usando camisinhas, até para esconder uma pulada de muro e justificarem o encontro de um preservativo entre suas coisas, fiquei feliz”, emenda. Cris é assim. Intuitiva, sabe que a distância entre o discurso da fidelidade e a realidade da traição é mínima. Por isso festeja quando a hipocrisia fica de lado. Para ela, mais importante é a realidade. Coisas do Prazeres.
‘Meninas do tráfico’ na mira
Para Cris dos Prazeres, que abandonou a faculdade de Serviço Social no 2º período, a cumplicidade fez o trabalho crescer. Ela não fala, mas há relatos de preconceito explícito quando o tráfico dirigia a comunidade. Muitas meninas, impressionadas com o poder das armas, se envolviam com bandidos, às vezes com mais de um. Se pegassem uma doença, eram sumariamente executadas.
Há conversas ainda dando conta de expulsões de jovens com AIDS ou homossexuais — fato comum em comunidades sob o jugo do tráfico. Foi justamente esta combinação que a fez se movimentar para proteger as meninas.
Fundado por Cris no ano 2000, o grupo Proa (Prevenção Realizada com Amor) bate ponto na sede da Associação dos Moradores. Lá, um de seus 18 multiplicadores fica à disposição dos moradores para distribuir preservativos e, principalmente, dar orientação sexual, muitas vezes individualizada.

“A verdadeira relação sexual, a melhor de todas, se dá de fato quando um seduz o outro”, prega Cris, que não gosta da banalização do sexo. “Sexo é solidariedade”, diz. Ela faz questão de ressaltar a seriedade do trabalho.
KELVIN USOU CONHECIMENTOS NA ESCOLA
A aproximação com os jovens foi devagar. Mãe de três filhos, Cris usou o poder de sedução que toda mulher tem para chegar perto dos jovens. Era uma época difícil, em que o Brasil ainda enxergava o soropositivo como aidético.
A doença, que no ‘asfalto’ passou a ser aceita com a incidência sobre os jovens de classe média, e seu consequente controle através do programa do Ministério da Saúde, era chamada de Peste dentro da comunidade. “Tinha gente que falava que Fulano estava com a peste”, relembra Cris.
Passo a passo o trabalho foi se consolidando. Os sorrisos ‘sem graça’ ainda acontecem na abordagem ou nas palestras que dá na associação de moradores ou onde for possível.
Kelvin Fernandes, 17 anos, um dos membros da produtora Galera.Com e do grupo de guias que forma o Prazeres Tour, relembra bem a primeira vez em que travou contato com o trabalho de prevenção de Cris. Foi numa conversa em grupo sobre sexualidade e doenças sexualmente transmissíveis (DST).
“O trabalho dela é bastante bacana, e ajudou muito a me desenvolver”, diz o garoto, que falou sobre o tema pela primeira vez aos 13 anos. “Já peguei camisinha com ela várias vezes”, emenda.
A precisão da orientação recebida foi tanta que Kelvin se destacou na Escola Municipal Celestino da Silva, que fica na Rua do Lavradio, e o fez se transformar num multiplicador entre seus colegas.
“Aprendi muito com ela. Até fiz parte de um grupo na escola conscientizando os alunos. Pegamos muitas informações coma Cris”, lembra o garoto.