domingo, 16 de junho de 2013

Moacyr Luz: A sereia da enseada

Moacyr Luz: A sereia da enseada

Numa feira livre de Ipanema, identifico, boquiaberto, a sensacional cantora Dionne Warwick comprando umas sardinhas na barraca miúda

O DIA
Rio - O Brasil jogando em Brasília, festas para o Dia do Funcionário Público Aposentado, e eu com a cabeça no Rio de Janeiro. Noel Rosa a chamou de cidade-mulher, Paulo da Portela, também. Dois sambas pra essa sereia de canto e feitiço.

Às vezes, viagens diversas, você encontra guetos emprestados de países vizinhos, um muro invisível preservando costumes. Em São Paulo, metrópole das maiores, tem bairro e estação de trem, japoneses: Liberdade. Na mesma capital, pode-se conviver na Armênia, ou ‘manjare’ no Bexiga, norte-euroupeu ou latinos do continente no mesmo ramal.

Noutros tantos lugares nessa demografia brasileira, vivem hábitos alemães ou turcos, sem sair do nosso hemisfério. São emigrantes de tirolês, burcas e casacas pretas, ortodoxos quase cena de cinema. Daí, janelas abertas no azul de outono, sopra uma certeza: no Rio de Janeiro é sempre diferente.

Outro dia, encontrei com o querido Carlinhos Laguna, dono do Adelos, belo bar na Rua do Mercado. Português castiço, lisboeta carregado no sotaque, justifica a pressa em se despedir:
— Vou ensaiar agora com o Monobloco! Toco cuíca no grupo!

Quase desmaiei. Confesso que há tempos tive o mesmo indicativo isquêmico, comovido com o seu desfile solitário numa ala do Império Serrano. O cartunista Lan, um dos meus grandes amigos, é italiano da Toscana, mas o coração é caipirinha, mulatas e samba. Íntimo do craque Zeca Pagodinho, faixa com o meu mestre Jaguar, ‘tá’ mais pra genética do Madame Satã do que para a elegância de Marcelo Mastroianni.

Histórias que confirmam a diferença deste pedaço de mundo. Sou um homem a pé. Não sei dirigir, buzinar, nem procurar vaga pra estacionar perto do bar. As andanças, nada relacionadas à circulação das pernas, aeróbicas ou outras necessidades que desconheço, trazem belas cenas de cotidiano.

Numa feira livre de Ipanema, identifico, boquiaberto, a sensacional cantora Dionne Warwick comprando umas sardinhas na barraca miúda, já eviscerada e aberta pra afinar o paladar. O peixeiro ainda tira onda:

— Leva a do gato, Diô!

O mavioso Johnny Mathis cantou no Tem Tudo de Madureira num arroubo de paixão aos nativos. Sucesso em todo o mundo, Johnny por pouco não vem de mala e cuia pros chalés litorâneos, assim como Jim Capaldi, que dedicou seus últimos anos de vida às calçadas da Zona Sul.
Engrossando a alfândega, o gatuno londrino Ronald Biggs descarrilou o trem pagador pra subir impune o estribo do bonde de Santa Teresa. Só retornou ao chá das cinco quando a sandália havaiana já soltara as tiras, de velha.

Mesmo quando a sereia da enseada amanhece entre balas perdidas, sufocada no lixo da baía, o mar recua. É essa maré que molda a pedra da nossa identidade. Viramos todos cariocas.


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