Rio -  Pelo vidro de trás do táxi eu vi minha mãe pela última vez. Quadro aderido na memória: ela foi diminuindo conforme o veículo foi se afastando daquela calçada do cais do porto — abandonei-a na escuridão e solidão daquela cena, violentamente emudecido pela incomunicabilidade entre uma mãe que lutou até a morte para me converter à heterossexualidade. Eu, filho, que nunca sequer considerei a hipótese de ‘virar’ algo que eu não era.
Claro que existia a possibilidade de fingir, mas eu não admitia esta como opção de dignidade, e decidi ser digno até morrer. Aquela cena é sobre como pensamos dignidade: digno é comer, nunca dar; digno é não amar o mesmo sexo; digno é fingir; digno é reprimir. Uma questão de orifícios penetráveis e membros penetrantes.
Fui, mas para sempre fiquei naquela calçada. Na imaginação, eu tomei a mão dela e delicadamente a esfreguei em minha bochecha (sonhos). Eu falhei, ela falhou, a humanidade falhou tentando padronizar o desejo. Não é bom ser gay nem hétero, quando morremos sem o abraço que superará todo o embate.
Natural mães que lutem até a morte pelo que consideram ser um bom projeto de vida para os filhos; previsível filhos que discordem e abandonem seus genitores em cenas dilacerantes que embalsamam a dor. Onde fica o diálogo diante do dogma? Talvez não exista, porque, se eu te aceitar, eu vou ser a mãe que finge que amo este ser que faz o que não considero amável; e te amarei verdadeiramente se você se converter ao simulacro de si, igual e oposto a você mesmo. Eu amarei verdadeiramente o teu falso, a mentira que eu te tornei. Desintoxicação do tesão.
Que fique bem claro o direito dos pais. Que fique claríssimo o desencontro, a luta por não se sentir menor porque se ama isto ou aquilo. O que estará em jogo é o perdão e, como viver é perigoso, uma das cabíveis cenas é a que eu vivi naquela noite. Meu projeto de liberdade caminhava, atropelado pela dor oceânica de não viver o amor de mãe, condicionado a eu ser outro. Nossas vidas naufragavam ali, quando parti da última vez: o Júnior dela, que ela construiu e amou em seu silêncio e fúria, até morrer. Não fui o filho que ela quis, ela não foi a mãe que desejei, e no redemoinho de 48 anos a pergunta que restou é: o que fizemos do amor? Perdemos tempo pensando em quem dava e em quem comia, e não passamos mãos em faces que esperam um afago fantasma que não virá.
Lute até morrer, Joelma. Só não morra parada na calçada: se jogue embaixo do táxi, grite, esperneie. Passa rápido, e todo o tempo que temos é o tempo que jogamos fora, na ilusão que a conversão é.
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