Rio -  Vinte e dois de março, 10h. Grande fila se forma diante do balcão do Hospital Adão Pereira Nunes. São pessoas pobres, a maioria moradores da periferia da Baixada Fluminense, e sem planos de saúde. Ficam até cinco horas à espera do atendimento. Os corredores da emergência estão apinhados de doentes, e macas improvisadas viram leitos no corredor. O ritmo é lento. Faltam médicos para socorrer os pacientes. O homem responsável por colocar a emergência em ordem é Paulo Décio Escobar Paiva. Mas o oftalmologista está ocupado a 38 quilômetros de Saracuruna, Duque de Caxias. Dezenove pessoas pagaram R$ 60 e são atendidas por ele na Policlínica da Santa Casa de Misericórdia, em Cascadura, Zona Norte do Rio.
Entre uma consulta e outra, Dr. Paiva fala ao celular. É do hospital. Curto e direto, avisa: “Não, não vou aí hoje, não. Estou passando mal, só vim aqui para não deixar meus pacientes na mão.” Desliga o aparelho e, parecendo buscar uma desculpa, emenda como se falasse sozinho: “Aquilo lá só me dá dor de cabeça”.
Cerca de 500 pacientes são atendidos por dia no Saracuruna, onde macas são improvisadas nos corredores para dar vazão | Foto: Fernando Souza / Agência O Dia
Cerca de 500 pacientes são atendidos por dia no Saracuruna, onde macas são improvisadas nos corredores para dar vazão | Foto: Fernando Souza / Agência O Dia
O ‘aquilo lá’, problema para o oftalmologista, é a única opção do governo estadual para a saúde de 2 milhões de pessoas. É também a constatação de que a Medicina no Rio formou nova especialidade: médicos invisíveis. Como Paulo Paiva, eles aparecem nas escalas de serviço, mas dificilmente cumprem plantões. Interessante é que ganham remuneração extra por isso.
O esquema, feito sob medida  para os chefes de setores dos hospitais estaduais, deixa uma elite de médicos em casa, de sobreaviso, para só reforçar a equipe em caso de emergência. O resultado é fatal: eles nunca aparecem nos plantões. A encarregada pelo centro de imagem do Hospital Adão Pereira Nunes, Márcia Ferro Rodriguez, aproveita cada dia de ‘plantão’, inclusive, para reforçar a renda. Nada de ficar parada. Seu trabalho no hospital coincide com o serviço na Clínica de Diagnóstico por Imagem (CDPI) do Grupo Sérgio Franco.
Todas as terças e quintas-feiras, ela é pontual na unidade do BarraShopping — de onde nunca sai antes das 19h — e tem agenda concorrida: vaga disponível só para julho.
No hospital de Caxias, os plantonistas nem conhecem Márcia Ferro. A secretária do Centro de Imagem é enfática ao falar sobre a médica: a Drª. Márcia só vem às quartas-feiras à tarde”, avisa, diante da insistência sobre quando a chefe da radiologia vai à unidade. E olha que ganha mais uma diária-extra para ’trabalhar’ no plantão de 24 horas todos os domingos.
Entre março e abril, Márcia nunca foi vista no serviço. Aliás, a escala dos fins de semana é justamente quando os chefes estão 'escalados' no papel. E, também, quando registra o maior tempo de espera na fila por um médico no Hospital de Saracuruna.
Mais seis no esquema
A ‘jornada’ de Márcia Ferro Rodriguez nos hospitais de Saracuruna e Carlos Chagas é muito intensa. As escalas de serviço mostram que a médica emendou dois plantões de 24 horas por semana, mais o serviço de rotina das 7h às 19h, em março e abril.
A escala do Hospital Adão Pereira Nunes mostra que os plantões também tiraram o fôlego da médica Fernanda Ribeiro Fonseca. Responsável pela Clínica Médica, entre os dias 24 de março e 3 de abril, ela só folgou três dias. E teve três plantões de 24 horas, dois deles seguidos. O mesmo pique de Daniel Soto Lopes. Entre 21 março e 1º de abril, o médico deu quatro plantões de 24 horas. 
Número de óbitos dispara no primeiro trimestre deste ano
O número de pacientes mortos no Adão Pereira Nunes disparou nos últimos três meses, coincidentemente, quando os médicos incrementaram os chamados ‘folgões’: foram 427 pessoas — uma média de quase cinco doentes por dia, enquanto que, no ano passado, a estatística apresentava 2,7 óbitos/dia. Março, aliás, atingiu até o recorde de falecimento nos últimos anos: 152 pacientes morreram na unidade médica.
Curiosamente, na área onde os médicos ‘invisíveis’ aparecem lotados nos plantões estão setores de alta complexidade: além da emergência, cirurgia geral, clínica médica e UTI Neonatal. Em 2011, o hospital chegou a ser apontado como um dos principais centros de referência de traumatologia e queimadura no Estado do Rio.
Ao todo, são oito médicos com cargo de chefia-técnica e de direção. Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde informa que, nos plantões listados nos meses de março e abril, esses médicos não tiveram as digitais registradas no sistema biométrico da pasta. E diz ainda que quem tem cargo de chefia possui a prerrogativa de usar o ponto manual, embora o digital seja o recomendado.
Entre os médicos beneficiados com o ‘plantão’ sem controle digital estão o diretor-geral, João Paulo Duarte Salgado Júnior, e a vice, Érica Eisbach Del Castillo. João aparece na lista como lotado na emergência da Ortopedia em todos os domingos desde dezembro de 2012. Já Erica é escalada nas sextas-feiras, na UTI Neonatal.