Hospital agoniza com médicos que só dão plantão no papel
Eles faltam ao serviço para trabalhar em unidades privadas e ainda ganham mais por isso
POR JOÃO ANTONIO BARROS
Rio - Vinte e dois de março, 10h. Grande fila se forma diante do balcão do Hospital Adão Pereira Nunes. São pessoas pobres, a maioria moradores da periferia da Baixada Fluminense, e sem planos de saúde. Ficam até cinco horas à espera do atendimento. Os corredores da emergência estão apinhados de doentes, e macas improvisadas viram leitos no corredor. O ritmo é lento. Faltam médicos para socorrer os pacientes. O homem responsável por colocar a emergência em ordem é Paulo Décio Escobar Paiva. Mas o oftalmologista está ocupado a 38 quilômetros de Saracuruna, Duque de Caxias. Dezenove pessoas pagaram R$ 60 e são atendidas por ele na Policlínica da Santa Casa de Misericórdia, em Cascadura, Zona Norte do Rio.
Entre uma consulta e outra, Dr. Paiva fala ao celular. É do hospital. Curto e direto, avisa: “Não, não vou aí hoje, não. Estou passando mal, só vim aqui para não deixar meus pacientes na mão.” Desliga o aparelho e, parecendo buscar uma desculpa, emenda como se falasse sozinho: “Aquilo lá só me dá dor de cabeça”.
Cerca de 500 pacientes são atendidos por dia no Saracuruna, onde macas são improvisadas nos corredores para dar vazão | Foto: Fernando Souza / Agência O Dia
Todas as terças e quintas-feiras, ela é pontual na unidade do BarraShopping — de onde nunca sai antes das 19h — e tem agenda concorrida: vaga disponível só para julho.
No hospital de Caxias, os plantonistas nem conhecem Márcia Ferro. A secretária do Centro de Imagem é enfática ao falar sobre a médica: a Drª. Márcia só vem às quartas-feiras à tarde”, avisa, diante da insistência sobre quando a chefe da radiologia vai à unidade. E olha que ganha mais uma diária-extra para ’trabalhar’ no plantão de 24 horas todos os domingos.
Entre março e abril, Márcia nunca foi vista no serviço. Aliás, a escala dos fins de semana é justamente quando os chefes estão 'escalados' no papel. E, também, quando registra o maior tempo de espera na fila por um médico no Hospital de Saracuruna.
Mais seis no esquema
A ‘jornada’ de Márcia Ferro Rodriguez nos hospitais de Saracuruna e Carlos Chagas é muito intensa. As escalas de serviço mostram que a médica emendou dois plantões de 24 horas por semana, mais o serviço de rotina das 7h às 19h, em março e abril.
A escala do Hospital Adão Pereira Nunes mostra que os plantões também tiraram o fôlego da médica Fernanda Ribeiro Fonseca. Responsável pela Clínica Médica, entre os dias 24 de março e 3 de abril, ela só folgou três dias. E teve três plantões de 24 horas, dois deles seguidos. O mesmo pique de Daniel Soto Lopes. Entre 21 março e 1º de abril, o médico deu quatro plantões de 24 horas.
Número de óbitos dispara no primeiro trimestre deste ano
O número de pacientes mortos no Adão Pereira Nunes disparou nos últimos três meses, coincidentemente, quando os médicos incrementaram os chamados ‘folgões’: foram 427 pessoas — uma média de quase cinco doentes por dia, enquanto que, no ano passado, a estatística apresentava 2,7 óbitos/dia. Março, aliás, atingiu até o recorde de falecimento nos últimos anos: 152 pacientes morreram na unidade médica.
Curiosamente, na área onde os médicos ‘invisíveis’ aparecem lotados nos plantões estão setores de alta complexidade: além da emergência, cirurgia geral, clínica médica e UTI Neonatal. Em 2011, o hospital chegou a ser apontado como um dos principais centros de referência de traumatologia e queimadura no Estado do Rio.
Ao todo, são oito médicos com cargo de chefia-técnica e de direção. Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde informa que, nos plantões listados nos meses de março e abril, esses médicos não tiveram as digitais registradas no sistema biométrico da pasta. E diz ainda que quem tem cargo de chefia possui a prerrogativa de usar o ponto manual, embora o digital seja o recomendado.
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