Os netos de santo
Praticantes do candomblé contam como é feita a iniciação das crianças, que desde bebês exercem funções e participam das cerimônias
POR ANGÉLICA FERNANDES
Rio - Aos oito meses de idade, Heitor Monteiro Paganini já tocava atabaque no terreiro de candomblé da sua bisavó de sangue, Edelzuita de Lourdes. As batucadas não eram por diversão. Mesmo ainda bebê, Heitor exercia um dos “cargos” mais renomados da religião: o de ogan alagbê (que é o “chefe” dos tocadores no terreiro). A função não foi escolhida por ele, e muito menos por sua mãe de santo. O responsável, segundo os frequentadores do terreiro, foi seu orixá Xangô (Deus da Justiça), que o consagrou naquela época, para hoje, um ano depois, este virar o grande dom de Heitor.
“Ele toca junto com os adultos e faz bonito. Acompanha todas as cantigas no ritmo certo. É a sensação do terreiro. Xangô, com sua sensibilidade, soube ver exatamente o dom dele”, conta a bisavó de Heitor, e também sua mãe de santo, Edelzuita D'Oxaguiã, que através do jogo de búzios interpretou a vontade do orixá em ter Heitor como ogan.
Heitor exerce um dos ‘cargos’ mais renomados da religião: o de ogan alagbê ('chefe' dos tocadores no terreiro) | Foto: Ernesto Carriço / Agência O Dia
Mas para exercer tal função, Heitor precisou da dedicação de toda a família. Quando uma criança é iniciada no candomblé, ela participa de cerimônias em homenagem ao orixá para então ficar recolhida num quarto no terreiro, por dias. “Heitor ficou quase um mês lá. Muitas pessoas da minha família passaram a morar no barracão porque ele era um bebê ainda”, contou a mãe dele, Carla Mayara Monteiro e Monteiro, 21.
A experiência vivida por Heitor na sua fase de recolhimento será a mesma de Ana Clara, 7 anos, Nicole Tina, 7, e Patrik Alan, 11, nos próximos meses. No terreiro da mãe Meninazinha D’Oxum, em São João de Meriti, na Baixada, as três crianças, que, no jogo, apareceram escolhidas por seus orixás, serão iniciadas nos preceitos do candomblé. A decisão de seguir o caminho é opcional. “Eu quero. Gosto daqui”, conta Patrik.
Número de candomblecistas diminuiu, segundo Censo
Dados do último Censo do IBGE, em 2010, mostram que há 50.967 candomblecistas no Rio. Em comparação ao penúltimo índice, em 2000, houve redução de adeptos da religião. Naquele ano, 55.400 pessoas disseram ser do candomblé. Na umbanda, o dado em 2010 chega a 89.626 pessoas. O número pode estar diminuindo pelo medo que as pessoas sentem do preconceito.
Tauana dos Santos, 23, vai ter seu primeiro filho em três meses. Ele nascerá no mesmo meio em que ela nasceu e cresceu: no candomblé. Vítima de preconceito, Tauana quer tolerância na religião para seu filho. “Vou deixar ele escolher a fé que quiser. Só vou exigir respeito das pessoas”, completa.
Nicole Tina, Ana Clara Sales e Patrick Alan serão iniciados nos preceitos do candomblé | Foto: Ernesto Carriço / Agência O Dia
Iniciada criança, ‘mãe’ hoje tem mais de 150 seguidores
Quando foi iniciada no candomblé, na década de 1930, aos nove anos, Maria do Nascimento, a mãe Meninazinha D’Oxum, hoje com 75 anos, não imaginaria a legião de filhos de santo que teria. Pelas suas mãos, já passaram mais de 150 pessoas. Agora está na terceira geração de seguidores: em breve, ela iniciará sua bisneta Ana Clara.
Para nunca esquecer sua raiz e principalmente sua avó, Iyá Davina, a quem atribui a responsabilidade por sua adoração à religião, Maria construiu em seu barracão, na Baixada, um memorial que guarda desde fotos antigas até artigos de santo. A intenção inicial de fazer uma homenagem à avó foi além. Hoje, o espaço é fonte de história e o lugar preferido das crianças no terreiro.
“Elas aprendem a base da nossa religião aqui”, explica Meninazinha, que trouxe para o memorial elementos de quando Iyá Davina tinha um terreiro na Bahia. “Guardo até o primeiro ibá (louça que representa o orixá) de Oxum da minha avó”, conclui.
Preconceito faz muitos jovens esconderem a religião
Quando Nicole Tina da Silva, de 7 anos, resolveu contar na escola que era candomblecista, perdeu quase todos os seus colegas de turma. “Riam de mim e falavam que eu era macumbeira, que isso era coisa do demônio”, relembra. A reação dos colegas a fez mentir em outras ocasiões. “Depois disso, eu passei a dizer que era católica”, admite, resignada.
O preconceito sofrido por Nicole foi o mesmo das mais de dez crianças acompanhadas nos últimos 21 anos por Stela Guedes Caputo, atual coordenadora do Ilê Obá Òyó, programa de pós-graduação em Educação da Uerj. “As crianças daquela época sofreram a mesma intolerância das crianças de hoje. Nada mudou”, explica a autora do livro ‘Educação nos terreiros’, lançado ano passado.
De acordo com Stela, a escola é o ambiente mais cruel do preconceito, que parte dos alunos e também de professores. “O professor confunde o público com privado. Sua fé, que é privada e íntima, se mistura com o espaço público da escola”, aponta Stela. E conclui: “Nossa educação pública sempre foi marcada por catequese”.
Mesmo com a rejeição por parte da sociedade, nenhum dos seus personagens de estudo abandonou a religião. “Pelo contrário, eles têm muito amor e dedicação. Mas ainda é uma pena que precisem esconder sua fé”, lamenta.
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