Rio -  Nossa madrinha, Beth Carvalho, me convida pra assistir ao mestre Jorge Aragão, ainda cabelo black, se apresentando no Casarão 80, Tijuca. Beth gosta de carros grandes e, na época, o Del Rey estava perfeito. Madrugada, eu, tijucano antigo, sugiro um atalho de malandro pra cortar caminho.
O asfalto vira barro vermelho, subida íngrime, mato alto, capim-limão, e descubro o óbvio: entramos numa das favelas do bairro.
Marcha a ré de filme americano, e o possante carro cai com as duas rodas do lado esquerdo num valão, pré-UPP. E agora?
Num piscar de olhos assustados, se aproximam dois sujeitos já com as pupilas bem abertas: — Que "qui" tá pegando?
Meio agachado, descobre: — Beth Carvalho! Que honra!
Amanhecemos com um guindaste e duas cervejas na birosca em meia porta.
Uma das minhas músicas mais importantes, um norte na minha carreira, se chama ‘Saudades da Guanabara’. A primeira gravação desse samba foi feita por ela, Beth Carvalho, em discobatizado com o mesmo título da composição. O detalhe que mudou o rumo da história dessa obra nasceu de uma sugestão da madrinha. Eu já havia escrito uns versos na melodia, mas, intuição de quem conhece, me sussurrou: — Deixa a letra pro Paulinho Pinheiro, pro Aldir... E foi assim que o samba alcançou a vida adulta.
São muitas histórias. Minha primeira ida ao Cacique de Ramos em 1985, uma tarde com violões, ela e Nelson Cavaquinho, outras músicas gravadas, um ramo de recordações.
Hoje é seu aniversário. Uma festa merecida por esta data. Lembro um ano dessas comemorações, gente pelo ladrão e uma fila curiosa na varanda de casa. Era uma carrocinha do Angu do Gomes, direto da fonte. Outro prato tão frequente quanto o bolo tradicional, especialidade de Sérvula Amado, vinha do mar, arroz de polvo.
Ali, conheci Arlindo Cruz, me aproximei definitvamente do meu querido Luiz Carlos da Vila, aprendi nos saraus da madrugada o respeito pelo compositor popular.
Conviver assim é um privilégio. Me belisco lembrando histórias, pra acreditar em tudo que vivi.
Carioca, timbre único, vem à memória outra cena. Cinco da manhã, apenas nosso grupo numa estridente mesa de bar, quando um gaiato implica que no Rio se trabalha pouco. Dedo indicador apontado, nossa cantora responde: — A verdade é que a gente não complica. Basta uma vez e tudo se resolve. Depois é samba!
Uma aula. Parabéns!
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